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Eva, Pandora e Sycorax: da origem da dominação masculina à manutenção da violência de gênero

Foto: Pixabay

Cada vez mais devastadora, a violência contra as mulheres é considerada endêmica em todos os países e culturas. De acordo com relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) em parceria com a ONU Mulheres, divulgado em 2021, ao longo da vida, uma em cada três mulheres, cerca de 736 milhões, é submetida à violência física ou sexual – um número que permaneceu praticamente inalterado na última década.

Quando falamos da violência que acomete mulheres, é comum nos atermos ao presente; estarrecidos, acompanhamos os noticiários sobre os casos de feminicídios no país – que se tornam cada vez mais recorrentes – nos esquecendo da degradação da mulher enquanto processo histórico.

Em um breve retorno ao legado investido à mulher pela cultura ocidental, notamos que a violência de gênero se perpetua sob o discurso da dominação masculina. Na Grécia Antiga, por exemplo, as mulheres não tinham direitos jurídicos, não recebiam educação formal e eram proibidas de aparecer em público sozinhas.

Foi também na Grécia Antiga que o poeta Hesíodo revelou o mito de Pandora, o mal personificado em forma de uma bela mulher. No mito que explica a origem da humanidade ao estilo de uma tragédia, Zeus cria a mulher como uma maldição para os homens, estabelecendo o equilíbrio entre o bem e o mal.

Com o advento da cultura judaico-cristã, a mulher, culpada pela expulsão dos homens do paraíso, torna-se aquela que deve obediência e submissão aos homens. Passado o tempo, a Igreja, através da Santa Inquisição, em junção com o Estado, foi responsável pela caça às bruxas, entre os séculos XVI e XVII, levando à morte milhares de mulheres na Europa e no Novo Mundo.

Em sua obra História do Medo no Ocidente, Jean Delumeau aponta que, no começo da Idade Moderna, no ocidente, a mulher foi identificada como “um perigoso agente de Satã”, não somente por homens da Igreja, mas também por leigos.  Para o historiador francês, “a atitude masculina em relação ao ‘segundo sexo’ sempre foi contraditória, oscilando da atração à repulsão, da admiração à hostilidade”.

Em Calibã e a Bruxa: Mulheres, corpos e acumulação primitiva, a filósofa Silvia Federici demostra que, no início do sistema capitalista, a crise econômica, social e populacional na Europa, gerou um movimento de apropriação do corpo feminino pelo Estado, em que o corpo da mulher foi colocado como uma “máquina de reprodução” a fim da mão de obra necessária ao sistema.

O nome do livro de Federici,  Calibã e a Bruxa, faz alusão aos personagens da obra “A tempestade”, de Willian Shakespeare. Calibã é um homem negro escravizado e descrito como selvagem, filho da bruxa Sycorax. Ambas as personagens são tomadas como símbolos do racismo e da misoginia, que sempre andaram de mãos dadas com o capitalismo.

É justamente sob a égide do capitalismo-patriarcalismo-racismo que o regime da dominação e exploração das mulheres pelos homens continua a se perpetrar. No livro A Dominação Masculina: a condição feminina e a violência simbólica, o sociólogo Pierre Bourdieu define a “imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina” como sendo aquela que estrutura a percepção e a organização de toda vida social, incidindo sobre corpos e mentes, discursos e práticas sociais e institucionais, naturalizando a desigualdades entre homens e mulheres.

Em suma, se manifestando de formas distintas ao longo da história, a violência que atinge os corpos femininos, que emudece vozes e castra desejos, reaparece prontamente sempre que a dominação masculina é posta à prova e a hierarquia dos gêneros ameaça ser abalada.

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