Notou certa feita o influente e heterodoxo filósofo socialista Martin Buber que a palavra religião não se encontra na Bíblia.
Esse fato seria apenas mais uma platitude no que concerne à hermenêutica dos livros sagrados se não nos revelasse algo bastante importante e profícuo do ponto de vista da epistemologia da religião.
Pode o ser humano viver sem acreditar em Deus?
A resposta é evidente e para certas elites intelectualizadas no ocidente parece mesmo beirar o escândalo intelectual esta pergunta: Deus? Como assim?
Em um mundo onde o desenvolvimento tecnológico parece não ter fim, onde a laicidade do Estado democrático de direito consolidou a ideia das garantias inalienáveis do homem, onde a palavra “ciência” ganha cada vez mais a aura de sacrossanta verdade insofismável, nesse ethos cultural, falar sobre Deus parece mesmo ser algo senão dispensável, ao menos pueril e privilégio dos mal-educados nos saberes positivistas da época digital.
Nos corredores da universidade localizada em Marburg-Biedenkopf, na Alemanhã, conta-se, em tom de pilhéria, que o filósofo Kant só teria reinserido Deus em sua Opus Magnum deontológica – a Crítica da Razão Prática – depois que o seu mordomo leu a primeira Crítica e ficou desapontadíssimo com o patrão pela ausência do seu Deus luterano…
Mas, afinal de contas, estamos falando do quê quando nos referimos à religião e a Deus?
Religião é um sistema cultural encarnado na realidade natural humana e se estrutura numa plêiade de mythos, rictus, prédicas morais e um arcabouço considerável de engajamento com o status quo social e político em que viceja seu poder de agregar e difundir visões particulares de mundo (argumentos ex cátedra sobre as revelações transcendentais).
Há uma questão debatida há anos nas ciências humanas e na filosofia da religião: é possível falarmos de religiões no plural (dada a enorme variedade cultural na história humana) ou é crível falarmos em uma essência das religiões, ou seja, algo que as unificaria sob os mesmos fundamentos arquetípicos?
Nomes como Mircéia Eliade, Rudolf Otto e filósofos que mesmo durante a era de Péricles, na Grécia democrática, debatiam e repudiavam o idealismo platonizante (base metafísica para as teologias ocidentais), como é o caso do ultramoderno Górgias e seu relativismo absoluto ou, a posteriori, o pai do ceticismo Carneádes.
Religião deve ser entendida como uma construção humana vinculada aos meandros e vicissitudes atinentes ao poder estabelecido e eivada por doses generosas de alienação e manipulação humanas.
Sociólogos de jaez marxista, antropólogos estruturalistas e psicanalistas têm atacado esse caráter fetichizante das religiões.
Só deveríamos acrescentar a título de provocação intelectual a impressionante recorrência desse instituto sagrado na história humana… praticamente não há uma só civilização conhecida que não tenha articulado um nodal sistema de significados religiosos!
E talvez seja algo presunçoso chamarmos essas cilivizações, in totum, de alienadas…porque estaríamos excetuando apenas a nós mesmos como esclarecidos, é claro, nós que lemos Nietzsche na academia… e analisamos o homem de um ponto de vista absoluto…
No que concerne à ideia de Deus a questão é bem mais complexa!
Foi Santo Thomas, entre tantos outros, que falou em um Deus absconditus, ou seja, um Deus incompreensível às categorias racionas humanas e mergulhado em equívocos dado o nominalismo inerente aos nossos sistemas linguísticos de significação ontológica.
Se conjecturamos um Deus, devemos fazê-lo sabendo que ele é o inteiramente outro de Rudolf Otto ou o tu eterno de Martin Buber, ou seja, sua potência não cabe nos limites da racionalidade noética do homo sapiens criatural.