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Lâminas do Cotidiano: Fogo e mistério

Tu raramente te desvelas em luz reconhecível e quando o fazes, dá-se aos poucos, cerimoniosamente, para logo em seguida esconder-te, travesso que és, no mistério das brumas trovejantes.

Impossível ver-te face a face – nós, humanos, derreteríamos diante de tal esplendor – e então, o máximo que conseguimos aceder de tua presença são migalhas, instantes, fragmentos que vicejam o sentimento de humildade aos pés de teu trono angular e inefável. Com efeito, a minha própria vida foi procurar-te nas radículas materiais do tempo para ao fim do dia, quedar-me decepcionado, sozinho comigo mesmo.

Mas, eu quis tocá-lo nos azulejos amurados do cosmos e sentir o pulsar do teu coração bondoso, para logo em sequência, abraçar-te como se abraça um amigo distante surpreendentemente encontrado.

Ledo engano, pois é de tua cariz mais profunda, esconder-te das vulgares ambições terrenas e então eu, capciosamente, tentava urdir substitutos para preencher a angústia de viver sem ti, acumulada no deambular da existência. E inventava céus azuis aqui embaixo, prazeres variados, desde os sedutores e inebriantes até os cruelmente perigosos e mortais. Então, embriagava-me com licores ofertados pelo mundo, chegando mesmo a proclamar no auge do delírio, ser senhor absoluto de minhas ações, repleto de virtudes e ciente da força de meus braços obreiros e da inteligência geminiana, não de todo apedêutica.

A solidão me bastava, como um copo de destilado basta ao bêbado equilibrista e então, eu zombava alegremente de ti e de teu manto escuro. Por que te escondias assim de maneira tão incompreensível? Não tiveste nem uma vez piedade do jovenzinho que acalentava aproximar-se de teus olhos judeus? Nem te compadecias do homem adulto, que encontrava na beleza feminina um êmulo para tua morada adornada por anjos alegres, sensualíssimos?

Tiveste algum dia saudade da minha partida, ó Absconditus? Ou então, julgavas enlouquecer-me, pois sabias que esse teu filho esperava encontrar-te ao largo dos destemperos da terra?

Sob o fogo e o mistério, caminho aqui e agora no chão pedregoso e já não tenho certeza que sou eu próprio a caminhar ou apenas a máscara fúnebre erodida pelos desejos ímpios da carne.

Tu me ouves glorioso ao derredor das esferas intangíveis? Zombas, irritas–te comigo que sou a criatura do barro e da apostasia? Afasta-me assim deliberadamente da tua luz suspirante de paz amorosa?

Ah, pobre condição humana!

Me recordo, como se estivesse no jardim das oliveiras contigo, daquela tarde fria na Patagônia argentina, quando tu apareceste transfigurado no corpo de uma criança malformada. E então, te reconheci imediatamente, ó Altíssimo, palpitando no coração do menino doente e derramei lágrimas sinceras como se fossem o canto de um homem cego iluminando mil casas malsãs.

Mas, é de tua cariz profunda esconder-te e partir e deixar-me a sós comigo mesmo e meu atávico desespero. E é o meu destino de poeta esperar-te, esperar-te na chama viva de uma vela acesa em sacrifício dos esquecidos.

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