Por Claudia Mastrange
Nany People chega chegando. No talento e no bom astral. Não é à toa que o seu atual espetáculo, em cartaz no Teatro PetroRio das Artes, no Rio, chama-se ‘TsuNany’. Com mais de 40 anos de carreira, formada em interpretação e tendo trabalhado ‘desde sempre’ nos bastidores do teatro, ela ganhou um pouco mais o coração do público ao viver o Marcos Paulo de ‘O Sétimo Guardião’ e, mais recentemente, brilhou soltando a voz no ‘Popstar’.
Transexual, nunca fez cirurgia de resignação sexual em respeito a um pedido da mãe. “Nunca foi fácil, mas não gosto de vitimismo. Sempre corri muito atrás, trabalhei em três, quatro empregos para segurar a onda. Fui garçom, maquiador, camareira, passadeira… até poder viver de teatro. Agora está nascendo um novo espetáculo, ‘Nany é Pop’, em que vou cantar o amor em seus vários estágios. Sou ligada no 220!”, avisa ela, que também aguarda a estreia de dos filmes: “O Troco’ e ‘Quem Vai Ficar com Mário’. Em entrevista ao Diário do Rio, plena aos 54 anos, Nany fala de carreira, maturidade, sexualidade, humor e intolerância. Confira!
Início no Chacrinha
Comecei com 10 anos. Aos oito cantei no Chacrinha, em Poços de Caldas. Três meses depois Chacrinha voltou, eu cantei de novo e ganhei uma televisão. Depois ganhei uma bolsa de estudos para o Conservatório Musical, que é ao lado do Teatro da Urca, homenagem ao tradicional Cassino da Urca. Meu solo novo, o espetáculo solo ‘Nany é Pop’, vou estrear lá. Com 20 anos fui pra São Paulo estudar teatro, fiz a peça ‘Macunaíma’, cursei interpretação na Unicamp e trabalhei dez anos no Teatro Paiol, com Paulo Goulart e Nicete Bruno. Foi minha grande estufa! São 44 anos e nunca parei. Devido ao teatro fui parar na televisão. Na época do Paiol me convidaram para fazer show, um tempo depois eu fazia em sete casas diferentes. O [apresentador] Goulart de Andrade soube que tinha uma criatura ‘causando’ no Resumo da Ópera e me chamou pra para fazer um quadro no ‘Comando da Madrugada’, na Manchete, em 1996. Em 1998 trabalhei com Amaury, Band, depois voltei com Goulart na Gazeta e, em 2001, fui para a Hebe. Tudo isso estando também o teatro. Em 1998 fiz teatro, no centenário de Brecht, depois veio a rádio Jovem Pan, com Jairo Bouer. Tudo junto. Sou ligada no 220 [risos]. Acordo às 6 da manhã, pareço tia velha do interior que acorda cedo para molhar as plantas. Eu gosto da vida!
Lília Cabral: inspiração
Na Globo era pra ficar três meses e fiquei até a última cena da novela. Encontrei a atriz que me inspirou nos anos 80, Lilia Cabral. Em 1984 fui ver ‘Piaf’ e desci a Rua Augusta pensando: tenho que ir pra São Paulo fazer teatro. Quando vi Lília Cabral em cena, pensei: é isso que quero fazer. E 30 anos depois vim encontrar essa mulher que me inspirou e que sempre acompanhei. Sempre gostei da linha dela, ela é dramática, mas também bem-humorada. Você torce para a vilã que ela faz… Ela é de verdade, bate o texto olhando nos teus olhos.
Viu a Nany People? Do nada…
Devido a essa projeção que a novela dá o povo diz: “viu a Nany People?”. Do nada… As pessoas me viam em programa de humor, linhas de show e achavam que eu era uma doida que saiu do Kinder Ovo para cantar ‘I Will Survive’. E não é isso, não faço só stand up. Em 2015, em uma peça chamada ‘Caros Ouvintes’, que se passa final dos anos 60, AI-5 rolando, eu fazia uma senhora de extrema direita homofóbica e fui indicada ao Prêmio Quem de Teatro. Primeira vez que uma trans foi indicada a um prêmio de teatro.
‘Sepultei minha mãe numa sexta e sábado estava no palco’
Eu já abri mão de relacionamento, casei com meu trabalho. Teve época de gravar novela de segunda a sábado e, mesmo assim, fazer teatro no Rio. Concilio, dou um jeito… Sepultei minha mãe numa sexta, no sábado estava no palco, até como terapia, precisava do dinheiro pra sobreviver Odeio esse vitimismo. Quando você faz 50 anos, descobre eu metade da sua ampulheta já caiu. Você já passou por tanta coisa, que agora passa rindo. Tipo, meninos vestem azul e meninas vestem rosa. Com quatro anos cantei de rosa para ganhar um cone de doces rosa, que viraria chapéu de fada. Meu pai falou: “meninos vestem azul, meninas vestem rosa”. Então ouço esse discurso há 50 anos!
Teatro é amante caro
A internet da voz a um bando de idiotas, que não tem o que falar. Mas uma hora isso vai passar. A pessoa não tem o que fazer, vira ‘digital influencer’, todo mundo quer ser blogueiro. Não tem formatação nem fundamentação, não tem ofício e vira blogueiro, ‘pessoa pública’. Pessoa pública no meu tempo era puta. E depois vê que não consegue vender o canal e se dá conta que é um grande equívoco. Então acho que essa modinha vai passar. O que é celebridade? O teatro é um amante muito caro, que te pede muito e não te promete nada. Então você tem que ler muito, estudar muito, trabalhar muito…
Brincadeira de dizer verdades
Estamos em alta temporada de verão, com ótimo púbico mesmo com as pessoas hoje viajando mais. Concorremos com NetFlix, mídia, TV a cabo… Mas estamos lotando esse teatro, creio que pelo humor. Mas penso que não é só humor pelo humor… Ele é usado para se dizer coisas que normalmente as pessoas não dizem. Brecht [dramaturgo alemão] dizia que qualquer discurso para ser ouvido tem que ser bem humorado. O humor é libertador. Chaplin disse: “se você tivesse acreditado na minha brincadeira de dizer verdades teria ouvido verdades que insisto em dizer brincando. Falei muitas vezes como palhaço, mas nunca desacreditei da seriedade da plateia que me ouvia”. O humor tem o poder de penetrar na alma das pessoas.
Idade do umbral
Aos 50 anos você está no umbral, não é jovem nem velho. Como na época dos 14,15, que não é criança nem adulto. Se não pode ir à balada e ficar esperando duas horas em pé na fila porque não tem mais joelho pra isso! Agora tenho uma característica: só pego novinho, na casa dos 20. Se Madonna pegou Jesus, quero os querubins. Quem gosta de pau velho é orquídea, eu sou trepadeira. Falo isso no show. Ao contrário da Susana Vieira, não tenho paciência para quem está terminando [risos]. Mas é isso. Com 50 você já passou metade da sua vida blefando. Vou ser feliz quando eu puder compra as coisas ou quando casar… Não dá mais pra protelar a felicidade, esperar três verões. Não dá. Ter 50 é libertador. A essa altura você já casou descasou, chorou, traiu, foi traída… Quero viajar, reunir as pessoas, usufruir mais. Bem mais.
‘Dinheiro serve para adubar sonhos’
Você descobre que o dinheiro, na verdade serve para adubar sonhos. É um esterco. Perdi minha mãe quando eu tinha 37 anos. Ela descobriu um câncer, operou e morreu num espaço de um mês e meio. E o médico disse que eu não acreditasse em falsas promessas de cura, tirá-la de Poços de Caldas, etc. Na época eu trabalhava com a Hebe e ali vi que não adiantava ter dinheiro, prestígio, nada. Então a vida, como disse Gonzaguinha, “é um sopro do criador”. Então você tem que aproveitar a vida e trabalhar no que gosta. Porque são dois terços da vida que passamos trabalhando e, se a gente faz o que gosta, se diverte.
Limite para o humor
O Teatro de Revista foi o precursor do stand up. Eles faziam isso. Oscarito, Grande Otelo, depois Chico Anysio, Miéle e Rogéria eram ‘entertainments’. Contadores de piadas, divertiam as plateias. Na essência, o stand up é isso. E hoje, comercialmente é um espetáculo mais viável do que montar um musical. Teatro em pé. Você e o microfone. Mas houve um equívoco de se pensar que quanto mais escrota fosse a piada, mais inteligente o humorista era. E começou-se a pagar um preço por isso. Você pode pensar o que quiser. Mas tem que saber a maneira de falar. O limite do humor é o bom senso. Tem limite pro fogo? Tem, porque se deixar a mão nele, queima. Hebe me disse: “o microfone é uma arma, você pode usar contra ou a seu favor”. Se você vai falar num evento onde as pessoas estão comendo, não vai fazer piada com detrito.
As valsas da vida
A gente tinha que aprender a viver a vida sem pretensão. Somos muito pretensiosos, você acha que a coisa tem que acontecer porque está lá. E não é assim. Minha mãe dizia que a vida é uma festa. A gente chega e já esta rolando, você vai sair e vai continuar rolando. E uma hora você pode estar de garçom, outra de convidado, outra de penetra. E o que conta da festa são as grandes valsas que você pode dançar. É bem assim.
Galera mais jovem
O público jovem me viu na novela, no Poppstar, e pede para tirar foto. Muitos me conhecem por conta dos pais e avós que me conheciam da Hebe. Quando cheguei ao Rio achei que ninguém ia me conhecer, mas que nada! Me param na rua… “Ê Nany!”, na maior intimidade e alegria. O Rio esta sendo muito generoso comigo. Vim pra ficar três meses e vou completar dois anos, emendando uma coisa com outra.
Popstar: ‘fui prejudicada por um produtor’
No Popstar realizei meu sonho de ser cantora, porque ali são atores que cantam, é tudo dentro de um personagem. Não temos obrigação de saber todas as técnicas vocais, etc. É pra se divertir, fazer algo que está fora da zona de conforto. Cheguei a ir para a repescagem, mas voltei. Agora, eu fui muito prejudicada por um produtor, que baixava demais o tom das músicas. Falei: “obrigada por ter me tombado. Eu não ia vencer, mas chegaria à final”. Mas me diverti muito, eu fiz muito bem meu papel.
Nany por Nany
Sou pau pra toda obra e obra pra todo pau… Não tem assim, só a atriz, a humorista… Sou tanta coisa. Mas a atriz vem na frente. Não me arrependo de nada em minha vida. Você faz as coisas do jeito que é viável fazer. Por instinto, por sobrevivência.
Tempos de intolerância
Quando é que foi possível [a aceitação pública]? Meu nome deveria ser Nany Piracema porque eu levei 18 anos pra ter direito ao meu nome. Entrei na Justiça e questionavam o porquê de tudo, era preciso fazer a cirurgia e tinha que fazer exames para provar se havia quantidade de hormônios femininos. Antigamente tudo era pior. O governo eu nem considero intolerante, considero burro. E a ignorância é a pior porque todos agem como crianças mimadas. E aí não tem diálogo. A ignorância é atrevida e isso me dói, seja no governo ou nas pessoas. Não me deixo catalogar, não me peça esse serviço de lutar por inclusão, etc. A vida é um eterno vestibular.
Tratamento psiquiátrico aos 12 anos
Hoje há até uma aceitação maior, muito mais por parte das pessoas em geral. Antigamente nem se falava desses assuntos na hora do almoço. Com 12 anos me jogaram no psiquiatra, tomei hormônio masculino até os 17, mas não tinha para onde fugir. Eu era menor de idade, mas acabei me rebelando. Não fiz e depois entendi que era trans, busquei tratamento e hoje só lembro que sou trans quando alguém cita. Eu sou mulher.
Fotos: Diário do Rio